Dilemas éticos para um futuro não tão distante

Versão escrita para a conferência apresentada por ocasião do XXIII Encontro da Nova Consciência em Campina Grande, Paraíba [2014].

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Antes de começar, gostaria de perguntar se algum dos presentes não acredita na existência de Deus. Alguém aqui? [duas pessoas levantam a mão, numa sala com aproximadamente duzentas pessoas]. Ah, ótimo, obrigado. O legal do Encontro para a Nova Consciência é que podemos dizer o que pensamos e assumir quem somos, sem medo de levar pedrada. Bem, vocês são como eu, não acreditam na existência de Deus. Mas gostaria de propor uma exercício. Vamos imaginar, por um minuto, que Deus de fato exista e tenha criado todo o Universo.

Eis a Terra: o planeta no qual vivemos. Ele é especial sob diversos aspectos, mas acho que vocês sabem disso.

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A Terra se localiza num Sistema Solar sui generis. Sob diversos aspectos, uma região estável do Cosmo, onde a vida se tornou possível por conta de uma série de razões que no momento não importam. Eu passaria uma palestra inteira apenas falando sobre isso.

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Nosso Sistema Solar tem diversas estrelas vizinhas, embora “vizinho” ainda tenha que ser entendido como DISTANTÍSSIMO. É a nossa vizinhança estelar. Todas estas estrelas, além de outras muito, muito mais distantes, estão dentro de um mesmo conjunto, ao qual damos o nome de “galáxia”. É a nossa Via Láctea.

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Considere que várias galáxias juntas formam o grupo local de galáxias. Então, chegamos ao Superaglomerado de Virgo. E, por fim, ao Universo observável – tudo o que conseguimos alcançar.

Você acha mesmo que, se Deus existir e for o criador de tamanha grandiosidade, ele estará preocupado com o fato de que você se masturba? Ou com a roupa que você veste? [risos da plateia]. Ok, peguei pesado, e isso é um meme antigo da internet. Mas é isso mesmo. Eu, ateu, até posso admitir que Deus exista. Você, teísta, admitiria que a sua visão de Deus talvez seja um tantinho humanizada e carregada de valores morais que nós mesmos criamos?

Mas vamos ao que importa, a piada foi só pra quebrar o gelo. Por razões inteiramente desconhecidas, existe tudo ao invés de nada. Treze bilhões de anos atrás, logo após o singular evento que chamamos de “Big Bang”, mutações atômicas ocorreram de modo que do hidrogênio emergisse o hélio, o lítio e assim por diante, de modo que as estrelas pudessem existir.

Tinha que ser necessariamente assim? A resposta é não. O Universo poderia ter sido algo completamente diferente. Poderia, por exemplo, ter sido um Universo composto apenas por átomos de hidrogênio. Um Universo de gás, sem estrelas, sem luz. Um Universo sem vida. Por que o nosso Universo é de um jeito e não de outro?  Por que tudo isso existe, ao invés de nada? Não sabemos, e admito que isso seja um mistério. O problema é chamar o mistério de Deus. O fato de não sabermos ainda algumas respostas não significa que devamos correr para a hipótese mais fácil.  E não seria de espantar se no futuro descobrirmos que existem muitos Universos assim. Nosso Universo não é infinito, é apenas imenso, muito maior do que qualquer um de nós consiga sequer imaginar. Existirão outros Universos com outras possibilidades? E se nosso Universo for uma bolha cósmica com diversas outras bolhas-irmãs, cujo destino tenha sido diferente do nosso porque lá não existem estrelas, e sim apenas gás?

Sobre outros Universos podemos apenas conjecturar, mas sobre o nosso podemos afirmar o quanto ele é especial. O nosso tem estrelas, numa profusão maravilhosa de tipos, cores, temperaturas e possibilidades.

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E por que as estrelas são importantes? Ora, nossos corpos e tudo ao nosso redor é feito por átomos de hidrogênio, carbono, oxigênio, nitrogênio, ferro, cobre e tantos elementos quanto consigamos lembrar. Todos os átomos que abrangem a vida na Terra, sem exceção, foram forjados no coração das estrelas. Você tem milhões de anos, pois seus átomos são os mesmos que uma estrela fez surgir em seu lento cozimento e numa posterior explosão! Assim, como já disse muito bem Carl Sagan e Neil deGrasse Tyson repetiu no remake de “Cosmos”, quando olho pro céu à noite, eu não tenho a menor dúvida de que somos um com o Universo.

E não é que nós apenas façamos parte do Universo: ele também está em nós. Eu, você, os gatos, os cachorros, as pulgas, as baratas, os passarinhos e as baleias no fundo do oceano, todas as pessoas que você mais admira e todas as que você mais sente nojo neste mundo, todos nós já fomos uma única coisa, no coração de uma estrela.

Vislumbremos Antares. Muito, muito maior que o nosso Sol. Se nosso planeta é um grão de areia diante do Sol, a nossa estrela por sua vez é uma insignificante bolinha diante de Antares. Acham muito?

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Vejam a comparação de tamanho entre Antares e VY Canis Majoris. E eu poderia passar a noite dando incontáveis exemplos de estrelas bem maiores…

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Por que o nosso Sol é tão especial? Qual a diferença entre ele e as outras estrelas, já que elas também são sóis?

A classificação de Harvard distingue sete tipos estelares: O B A F G K M. Essa distinção leva em consideração – dentre tantas outras coisas – a temperatura da estrela e sua coloração. Você pode até pensar: mas vocês que estudam Astronomia têm que decorar tudo isso? O segredinho é que usamos mnemônicos, brincadeiras que nos permitem decorar as coisas. Por exemplo, com a frase oh, be a fine girl, kiss me, você nunca mais vai esquecer que os sete tipos estelares são O B A F G K M. O legal dessa frase é que, se você for mulher e hetero, você pode decorar dizendo oh, be a fine guy, kiss me. Ou, se preferir, diga oh, be a fine gay, kiss me. Como vocês podem constatar, o joguinho mnemônico não é nem machista e nem homofóbico [risos da plateia].

Nosso Sol é uma estrela de tipo G. As estrelas tipo-G têm coloração aparente entre amarelo e amarelo-esbranquiçado, e uma temperatura que varia entre 5200 e 6000 Kelvin. Uma estrela tipo-G tem entre 0.8 e 1.04 massas do Sol, e um raio que varia entre 0.96 e 1.15 raios do nosso Sol. São totalmente diferentes de uma estrela tipo-O, por exemplo. As tipo-O, azuis, são bem mais raras, muitíssimo mais quentes [temperatura superior ou igual a 33 mil Kelvin], e costumam ter dezesseis vezes mais a massa do nosso Sol. Por diversas razões, encontrar a vida conforme a conhecemos é mais provável numa estrela tipo-G do que numa de tipo-O.

Apesar de existirem diversas outras estrelas parecidas com o Sol, de tipo-G, há pelo menos uma conhecida que é sua gêmea idêntica. Esta estrela, conhecida como HR 6060, não tem uma relevância que inspire mitologias. Ela não tem um nome inspirado em deuses, heróis, jamais foi alvo da atenção dos filósofos, artistas, é tão insignificante a olho nu que ninguém jamais ligou para ela. Esta estrela é a décima-oitava mais brilhante da Constelação do Escorpião, e nos anos 90 um astrônomo brasileiro chamado Gustavo Porto de Mello descobriu que esta estrela é uma gêmea absoluta do nosso Sol. Em todos os mínimos detalhes. Uma identidade tão perfeita, que se Deus existe e resolvesse trocar os dois sóis de lugar, ninguém perceberia diferença nenhuma. Uma estrela apenas um pouco mais quente ou um pouco mais fria destruiria a maior parte da vida conforme a conhecemos na Terra.

O segundo sol dista aproximadamente 428 trilhões de quilômetros de nós. 45 anos-luz. Façamos alguns exercícios comparativos, para vocês sentirem o drama: se o Sol tivesse 14 centímetros de diâmetro, a estrela gêmea estaria tão longe quanto Plutão. Se o Sol tivesse 1.5 centímetros de diâmetro, a estrela gêmea estaria tão longe quanto se você desse 32962 voltas em torno do planeta Terra. Seria como se o Sol estivesse aqui e seu gêmeo estivesse quase no planeta Júpiter. Se o Sol tivesse 0.15 centímetros, ou seja, um milímetro e meio, a estrela gêmea estaria bem perto do planeta Marte. Se o Sol tivesse 0.0015 centímetros, um centésimo de um milímetro, a estrela gêmea estaria um pouco mais longe do que a Lua.

E se o Sol tivesse 0.000015 centímetros e estivesse aqui em Campina Grande, a estrela gêmea estaria no Uruguai, na mão do presidente Mujica [risos da plateia; alguém comenta “iluminando a plantação de maconha”; eu respondo: “pois é, maravilhoso”].

Chega, não é mesmo? Creio que já convenci a todos de que, ainda que exista um mundo parecido com o nosso orbitando a estrela gêmea do nosso Sol, estamos longe demais para dar uma voltinha por lá. Não tão longe, contudo, para tentar um contato. Se enviarmos uma mensagem para lá, ela chegará em 45 anos. Pra ouvir a eventual resposta, mais 45 anos.

A astronomia é uma ciência que nos torna mais humildes e menos egocêntricos. Dadas as limitações do tempo de vida dos seres humanos, muitas empreitadas só terão sucesso nas próximas gerações. Se eu mandar uma mensagem hoje para a gêmea do Sol, jamais ouvirei a resposta. Apenas meu filho ou meu neto serão capazes disso. Uma tartaruga seria perfeitamente capaz de mandar uma pergunta e ouvir uma resposta, mas ela não liga para isso. A vida não é mesmo muito justa. A ciência astronômica demanda esta entrega, este desapego. Você faz algo, mas apenas as futuras gerações poderão se beneficiar disso.

A propósito, esta me parece uma diferença poderosa entre a Astrologia e a Astronomia. Costuma-se falar muito da diferença como sendo entre “crença” e “ciência”, mas eu observo algo mais. Uma diferença poderosa entre a Astrologia e a Astronomia é que enquanto a Astrologia faz você se sentir muito especial, atribuindo qualidades e singularidades à sua existência, a Astronomia faz você se sentir uma titica.

DILEMAS

Falemos agora de alguns dilemas éticos relacionados a temas astronômicos. É muito comum ouvir que investir dinheiro em viagens espaciais ou investigações do planeta Marte é um desperdício, considerando tantas coisas importantes que precisamos fazer por aqui. De fato, alguém pode argumentar que com o dinheiro da missão que levou uma sonda até Marte, poderiam ser construídas diversas escolas e hospitais. É verdade. Mas também é verdade que com o dinheiro que os EUA investiram para a guerra no Afeganistão, seria possível iniciar um processo de terraformação do planeta Marte.

Terraformar Marte é um projeto que, ainda que pareça de ficção científica, é bastante plausível e viável. Consiste na possibilidade de, gradualmente, converter um planeta morto num planeta vivo. Tal procedimento é tão complexo e com tantos detalhes, que seria impossível abordá-lo todo num seminário de um dia inteiro, quanto mais numa palestra. Temos, claro, alguns dilemas aqui: temos o direito de alterar as características de um planeta inteiro, mesmo que seja para criar uma fazenda de proporções planetárias? Estes dilemas e problemas estão longe de constituir mera ficção científica. Foi abordado seriamente por Lynn Rotchild, uma bióloga da NASA, num encontro internacional de astrofísica realizado pela USP no Brasil, anos atrás. A iniciativa privada Mars One pretende colonizar o planeta vermelho a partir de 2023. Mesmo que não o faça, é questão de tempo para que esta colonização ocorra.

Mas se podemos terraformar Marte, por que o faríamos? Qual a razão de tudo isso? Ora, o nosso Sol é, como toda e qualquer estrela, uma “entidade” que envelhece e morre. Com sua morte, devastará a Terra. Isso vai demorar tanto que nem os bisnetos dos bisnetos dos bisnetos dos bisnetos dos seus bisnetos vivenciarão este problema, mas em algum momento nós teremos que habitar outros lugares. Não tanto porque estamos tornando tudo mais difícil na Terra, mas porque tudo vai ficar insustentável de qualquer jeito, mesmo que todo mundo se porte da forma mais ecologicamente correta possível nos próximos milhões de anos.

Se estamos falando aqui de possibilidades, irei me referir a outro dilema ético que já aconteceu: o primeiro momento em que a humanidade teve que defender o direito dos extraterrestres. E isso aconteceu dez anos atrás. Vamos aos fatos: no dia 18 de outubro de 1989, a NASA enviou uma nave chamada Galileu, a fim de estudar o planeta Júpiter e suas luas. Esta missão espacial não-tripulada ficou orbitando Júpiter suas luas durante oito longos anos, pescando cada novidade, cada detalhe. Então, a surpresa: os cientistas descobriram que EUROPA, uma das luas do planeta Júpiter, tinha um oceano imenso. Tão grande que seu volume é dez vezes maior do que o da Terra. Este oceano, que é salgado e repleto de compostos sulfúricos e ferrosos, está debaixo de uma camada de gelo. Eis, então, o grave dilema:

Diante da presença de água liquida, seria acertado apostar que existe vida animal ou vegetal na lua Europa? Sim, seria. Esta aposta é muito boa. Mas se a sonda da missão espacial caísse lá, poderia prejudicar um ecossistema talvez muito delicado. Ou pior: poderiam existir microorganismos terrestres dentro da sonda que iriam infectar um planeta potencialmente vivo. Isso poderia causar uma verdadeira desgraça no ecossistema daquele mundo. O que a NASA decidiu: atirou a nave a 50 km/h na direção do planeta Júpiter, para que aquele planeta, com sua imensa gravidade, destruísse a nave e tudo o que havia dentro dela. Ao preço de bilhões de dólares, tomou-se uma decisão cujo objetivo era o de defender a natureza alienígena, se é que ela existe em Europa.

Se este é um tímido exemplo, a coisa pode ficar mais séria. Imaginem os dilemas e problemas associados a um eventual contato com outra civilização extraterrestre. Mal sabemos lidar com nossas próprias diferenças em nosso mundo, como lidaremos com as diferenças envolvendo uma cultura alienígena?

Nos próximos anos e décadas, nos veremos diante de muitos dilemas como estes, e outros ainda maiores. Um exemplo: vivemos, hoje em dia, bem mais e melhor do que nossos bisavós. Claro que nossos bisavós respiravam um ar melhor e bebiam uma água mais pura, mas nem por isso tinham o acesso a uma série de recursos que temos hoje, que nos permitem viver muito, muito tempo e vencer a morte numa série de casos. A tecnologia permite, por exemplo, que meu sobrinho de 17 anos exista. Nascido com um problema congênito no coração, ele só não morreu dias após nascer porque inseriram nele uma válvula artificial. Conceitualmente, meu sobrinho é um transumano: diz-se do transumano que é a pessoa cuja constituição não é inteiramente orgânica, mas beneficiada por elementos artificiais, inventados pelo homem. Notem: temos pelo menos uma pessoa que caminha sobre a Terra, produz e consome, que teria morrido se fosse deixada ao curso da natureza. Claro que, na prática, um monte de gente é assim, e mesmo quem não tem partes artificiais no organismo pode ter se beneficiado de remédios e tecnologias que permitem o prolongamento da existência.

Maravilha? Não, dilema! O que fazer, então, com a previdência social? Num mundo que tende a ficar cada vez mais idoso graças aos avanços médicos e cuja taxa de natalidade tende a decair graças aos métodos contraceptivos, como lidar com a economia de um mundo cheio de aposentados? Este problema é atual. A Itália, meu outro país, é um país de idosos. Por todos os lugares, você vê muito mais gente que passou dos 65 anos do que adolescentes ou jovens adultos, por exemplo. Isso muda a perspectiva, inclusive. Na Itália, uma pessoa é considerada JOVEM até uns 50 anos. A qualidade de vida é tão alta que os idosos viajam sozinhos, ou em grupo, preservam suas capacidades físicas e mentais, estudam, se divertem. Na Itália você não tem que se sentir mal porque seu corpo envelheceu. Até a cirurgia plástica por lá não é muito utilizada para preservar uma eterna aparência jovem. Problemas: num país de gente idosa, com poucas crianças nascendo e com jovens que preferem se mandar pra Inglaterra, a economia é perturbada. O Estado tem que pagar a aposentadoria de um monte de gente que não morre de jeito nenhum. As regras da aposentadoria precisarão ser revistas? Provavelmente sim!

O admirável mundo novo apresenta perigos e dilemas que não podemos evitar conjecturar. Hegel dizia que a coruja é o animal da filosofia, porque a coruja alça voo quando já é tarde demais. Pois eu digo que é preciso uma filosofia que alce voo antes, e não depois que o problema apareça. Os estoicos tinham uma expressão para isso: praemeditatum malorum, termo que pode ser traduzido como a antevisão do mal, ou a antevisão dos problemas. Conjecturar antes a respeito de para onde estamos possivelmente caminhamos. Uma filosofia que se volta para o futuro, ao invés de se limitar a refletir sobre o que passou.

A ficção científica tem um importante papel em tudo isso. Há quem defenda a ficção científica como uma notável forma de antecipar o futuro. Isso não é de todo verdade, ainda que eventualmente a imaginação ficcional antecipe o futuro. Ou mesmo se considerarmos que uma novela científica pode apresentar dilemas sobre coisas que não existem, mas que poderiam existir.

Um belo exemplo: Minority Report, de Phillip Dick. O mundo se torna um lugar muito mais seguro por conta de paranormais que veem os crimes antes de eles serem cometidos. A criminalidade desaba, porque os criminosos são presos antes de cometerem seus atos. Mas eis um dilema difícil de responder: é melhor viver num mundo seguro, ainda que o preço disso seja prender pessoas que ainda não fizeram nada? É correto prender uma pessoa pelo que ela ainda não cometeu? Ainda que Minority Report pinte uma realidade improvável, o filme nos transporta para debates políticos importantes: você prefere viver num mundo seguro, sem crimes, ainda que isso custe a sua liberdade individual? Existiria uma terceira via? Um mundo sem crimes, ou com bem menos crimes, sem precisarmos de câmeras vigiando os passos de todos nas ruas ou, como em Minority Report, vigiando até nossas mentes?

O papel da ficção científica é entreter. Se ela às vezes acerta e o que foi imaginado vira verdade, isso é um efeito colateral curioso. Os autores de ficção científica muitas vezes não imaginam o futuro, mas ajudam a criá-lo. Arthur Clarke, por exemplo, um dos mais exímios autores de ficção científica do mundo, não se limitou a imaginar o futuro. Ajudou a criá-lo. Já nos anos 40, Clarke, que também era matemático e físico, propunha o uso de satélites para telecomunicação e para funções hoje desempenhadas por aparelhos GPS. Clarke disse, certa vez, que:

Em alguns aspectos, a ficção é maior do que a não-ficção. Você pode ampliar a mente humana, alertando as pessoas para as possibilidades do futuro. E isso é muito importante numa época (como a nossa) em que as coisas estão mudando tão rapidamente.

A ficção científica, notem bem, não tem obrigações com a realidade. É injusto cobrar da ficção científica o acerto científico. Uma obra ficcional, seja ela com temática científica ou não, não tem a menor obrigação de ser fiel à realidade, embora seja um recorte desta. Um recorte onde exageros acontecem e coisas são suprimidas, a fim de criar um mundo paralelo onde tudo faz sentido dentro daquele mundo específico. E nestes mundos da imaginação, como por exemplo no mundo de guerra nas estrelas, o som se propaga no vácuo. As leis físicas por lá são outras.

Há, claro, um estilo chamado de hard sci-fi, que é aquele com o qual mais me identifico. A hard sci-fi tem por objetivo ser fiel, na medida do possível, à ciência deste mundo.

Por conta disso, escrevi um livro – Dezoito de Escorpião – cuja história gira em torno da estrela identificada por Gustavo Porto de Mello como sendo uma gêmea perfeita do nosso Sol. Este livro é o resultado de uma pesquisa de dois anos e, claro, tudo o que está ali é exagero e extrapolação fantasiosa (ou não) de coisas reais.

Escrever uma novela cuja temática é astronômica é um desafio prazeroso e que funciona, de certa forma, como um belo exercício meditativo que me retira de uma perspectiva egocentrada. A Astronomia não nos conduz à evasão do mundo, porém confere uma perspectiva ampliada que nos leva a valorizar ainda mais o nosso mundo, dada a raridade deste. Tenho, por exemplo, colegas astrônomos que se tornaram vegetarianos não por motivos religiosos, posto que são ateus, mas porque não conseguem mais comer nada que tenha sido morto pelo homem, considerando ser a vida tão, mas tão rara no Universo. Passar anos estudando a vastidão silenciosa e as distâncias imensas do universo faz com que muita gente passe a sentir fascínio e amor até por uma barata. Banalizamos a vida e nos perdemos em picuinhas e problemas de menor monta muitas vezes porque confundimos o que está ao nosso redor com tudo o que existe. Mas o que está ao nosso redor é raro, extremamente raro.

Ou, como declarou o Dr. Jonathan Osterman, criatura dotada de inteligência cósmica, para sua ex-namorada humana, numa das maiores obras dos quadrinhos do século XX: Watchmen, de Alan Moore:

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– Minha vida inteira é uma piada. Enorme, idiota e sem sentido. – diz a humana.

– Eu não acho sua vida sem sentido. – responde Jonathan.

– Mas.. por quê?? – pergunta ela.

E ele diz:

– Milagres termodinâmicos… eventos tão improváveis que são impossíveis na prática, como oxigênio virar ouro espontaneamente. Eu quero muito observar algo assim. No entanto, em cada par humano, milhões de espermatozoides avançam rumo a um só óvulo. Multiplique as possibilidades por incontáveis gerações, junte a chance de seus ancestrais estarem vivos, de se conhecerem, de conceberem esse preciso filho, essa exata filha… até mesmo sua mãe amar um homem que tinha todas as razões para odiar, e dessa união, das milhões de crianças competindo pela fertilização, foi você, apenas você que emergiu, extraindo uma forma específica desse caos de improbabilidades, como o ar se transformando em ouro.. isso é o pináculo do improvável. O milagre termodinâmico.

– Mas, se eu, meu nascimento, se isso for um milagre termodinâmico.. pode-se dizer o mesmo de qualquer pessoa no mundo! – diz ela.

– Sim. Qualquer pessoa no mundo.. Mas o mundo é tão cheio de pessoas, tão repleto desses milagres que eles se tornam lugar comum e nos esquecemos.. Eu esqueci.. Nós contemplamos continuamente o mundo e ele se torna opaco às nossas percepções. No entanto, encarado de um novo ponto de vista, ainda pode nos tirar o fôlego. Vamos, enxugue as lágrimas, porque você é vida, mais rara do que um quark e mais imprevisível do que qualquer sonho de Heisenberg; a argila na qual as forças que moldam a existência deixam as impressões digitais mais visíveis. Vamos, enxugue suas lágrimas…

…E vamos pra casa.

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