Mensagem alienígena num vírus

Buscar sinais de vida inteligente extraterrestre não é tarefa simples. Mesmo com o mais avançado maquinário nós podemos terminar sendo vítimas do azar, afinal emissões eletromagnéticas eventualmente enviadas por uma raça extraterrestre não ficam “paradas” esperando para serem descobertas. Elas viajam no espaço. É preciso que tal mensagem seja emitida de modo contínuo para que algúem a detecte.

Imagine, então, se por quinhentos milhões de anos uma civilização avançada emitiu mensagens, buscando outro povo que as soubesse identificar. Então, a civilização desiste ou se extingue, e a interrupção da mensagem – por azar – coincide com o nosso ano de 1903. Por não termos tecnologia suficiente até esta data, teríamos perdido a mensagem. Ela foi enviada por centenas de milhões de anos, mas não tínhamos como ouvi-la.

Nós tentamos enviar mensagens para outras civilizações desde 1979. A Mensagem de Arecibo, por exemplo, foi enviada no dia 16 de novembro de 1979 na direção do aglomerado M13, há 25 mil anos-luz de distância, onde se localizam 300 mil estrelas da Constelação de Hércules. Esta mensagem possui 1679 impulsos em código binário e foram transmitidos na frequência de 2380 megahertz. Daqui a 25 mil anos, alguma eventual civilização no aglomerado M13 poderá escutar nossa mensagem e respondê-la (o que levaria mais 25 mil anos para que pudéssemos identificá-la. Fenômeno parecido ocorre quando enviamos um e-mail para o Consulado Italiano em São Paulo). Surge, então, outro problema: existiremos daqui a 50 mil anos? A não ser, é claro, que num ponto mais curto entre aqui e lá alguém nos escute.

Este número – 1679 – não foi escolhido ao acaso. Ele é gerado pela multiplicação de dois números primos: 23 e 73. Há uma razão para tal escolha. Lembre-se que números primos são aqueles que não podem ser gerados pela multiplicação de quaisquer outros números inteiros: 1, 3, 5, 7, 11, 13, 17 etc. Não conhecemos nenhum processo natural que os gere. O que a Mensagem de Arecibo considera é que, se existe uma inteligência fora daqui, ela será capaz de entender que um pulso propositalmente primo supõe inteligência por detrás. Note que a ideia é antiga: em 1941, foi proposto que emitíssemos números primos em direção a Marte. Se houvesse inteligência no planeta vermelho, eles saberiam que nós somos bons em matemática. Seríamos aprovados no ENEM marciano.

Mas por que 1679, um número semiprimo resultado da multiplicação de dois primos? Por que não enviar um único primo, como 23 ou 11? Simples: para que o eventual receptor deduza que se trata de uma matriz bidimensional. Convertendo os pulsos enviados por Arecibo num desenho, é possível identificar vários aspectos de nossa civilização. Num trecho do desenho, por exemplo, é possível identificar os números 1, 6, 7, 8 e 15 – respectivamente, os números atômicos dos elementos fundamentais para a constituição da vida conforme a conhecemos: Hidrogênio, Carbono, Nitrogênio e Fósforo.

Elementos para a constituição da vida terrestre

Elementos para a constituição da vida terrestre

Outra parte da mensagem mostra as fórmulas para açúcares e bases para os nucleotídeos do DNA.

Nucleotídeos

Nucleotídeos

Outro trecho mostra a imagem de um ser humano:

Tô gato?

Tô gato?

Outro trecho mostra a localização de nosso planeta, no Sistema Solar (os quadrados pequenos mostram os planetas menores; a Terra, destacada, revela nossa posição; os planetas maiores são representados por 3 ou 2 quadrados):

A gente mora aqui!

A gente mora aqui!

Há outros trechos da mensagem, representando a dupla hélice do DNA e o próprio Observatório de Arecibo.

Conforme expliquei, enviar esta mensagem não é garantia de que alguém – mesmo que exista – a receberá.

Mas digamos que você pertença a uma civilização tão inteligente, que tal problema tenha sido aventado. Nós mesmos, aqui na Terra, estamos cientes das complicações que envolvem a emissão de transmissões eletromagnéticas para o espaço. Quais as alternativas? Poderíamos também enviar uma sonda para os confins do Universo, com desenhos, gravações etc. Fizemos isso. Mas e se tal sonda for destruída pela colisão com um asteróide?

Haveria alguma outra alternativa de mensagem?

Eis, portanto, um divertido (e pouco conhecido) episódio da história das publicações científicas sobre pesquisa de vida extraterrestre: em 1979, a conceituada revista Ícarus (Revista Internacional de Estudos do Sistema Solar) – em sua edição de número 38 – fez publicar um artigo de dois pesquisadores japoneses, Hiromitsu Yokoo e Tairo Oshima. O título, tão curioso quanto passível de causar arrepios de terror na maioria dos cientistas, trazia uma pergunta: “Seria o bacteriófago Phi-X174 a mensagem de uma inteligência extraterrestre?”. Alguns se espantam ainda mais ao constatar quem era o editor da Ícarus: Carl Sagan. Mesmo conhecido por seu saudável ceticismo, Sagan jamais foi uma mente fechada a hipóteses pouco convencionais. Nos anos 70, vocês devem imaginar a quantidade de textos malucos enviados para o mais televisivo e carismático astrônomo de todos os tempos. Logo na introdução do artigo, pode-se ler:

“Especulamos que um sistema biológico simples e capaz de auto-replicação em ambientes adequados, portando uma mensagem, possa ser um canal de comunicação interestelar. Um experimento preliminar foi realizado para testar a hipótese de que o vírus Phi-X174 carrega a mensagem de uma civilização avançada.”

Bizarro, não é mesmo? Uma questão estranha o suficiente para merecer a atenção de Sagan e sua equipe. E, assim, o artigo foi publicado. Entretanto, não para causar polêmica ou sensacionalismo. A Ícarus não era uma “revista popular”, era uma publicação científica com um público bem específico. O fato é que, a despeito da estranheza da hipótese, o artigo dos japoneses levantava alguns pontos dignos de séria atenção.

O bacteriófago Phi-X174 é um vírus comum, encontrado em bactérias intestinais igualmente comuns, chamadas E. Coli. Você mesmo pode ter muitas dentro de si (torço para que não!). Phi-X174 foi o primeiro organismo a ter o seu genoma inteiramente decifrado. O código genético consiste em uma fileira de nucleotídeos, representados pelas letras A (adenina), T (timina), G (guanina) e C (citosina). Cada “palavra” formada pela combinação de três letras (AGC, CCA, GCA etc) codifica um aminoácido numa proteína.

O vírus Phi-X174 contém três pares de genes sobrepostos, e o número de letras em cada sequência é: 121, 91, 533. Cada um destes números é – assim como o 1679 da Mensagem de Arecibo – o resultado da multiplicação de dois primos:

11 X 11 = 121

7 X 13 = 91

13 X 41 = 533

O questionamento levantado por Yokoo e Oshima faz sentido: se assumimos que a presença de primos tem a ver com intenção inteligente, seria razoável supor que alguém construiu este vírus? Um par de genes sobrepostos com valor primo poderia ser chamado de coincidência. Três pares é “coincidência demais”. Mas pode – note bem! – ser mesmo só coincidência. É preciso tomar muito cuidado com o fenômeno do wishful thinking: queremos tanto que uma coisa seja real, que nos esquecemos da necessária cautela, mesmo quando diante de evidências estranhas.

Faria sentido usar um vírus como o portador de uma mensagem. Seria a “carta perfeita”: ela se multiplica, se coliga aos organismos, é longeva, persiste ainda que a civilização emissora se destrua e demanda que a civilização receptora seja avançada o suficiente para decifrar genomas. A hipótese não deixa de apresentar problemas: seria preciso saber muito sobre a biologia do planeta alvo. A não ser, é claro, que esta inteligência tenha desenhado a biosfera do outro planeta – o que é excelente para uma obra de ficção científica, mas extremamente improvável. E este “criacionismo” apenas deslocaria o problema: se nossa biosfera foi desenhada por supercriadores de mundos, conforme preconiza o filme “Prometheus”, eles também vieram de algum lugar…

Quando Deus te desenhou, ele tava te trollando

Quando Deus te desenhou, ele tava te trollando na beira do mar…

Que se ressalte que Yokoo e Oshima não afirmam que o vírus Phi-X174 porta uma mensagem alienígena. Eles mesmos compuseram quadros bidimensionais como os enviados por Arecibo para tentar ver se aparecia algum desenho curioso. Imagine o susto de construir um quadro bidimensional a partir do genoma de um vírus e dar de cara com um Jedi erguendo sua espada laser?

Todavia, nada foi encontrado de significativo a partir da construção de diversos quadros bidimensionais. Se significam alguma coisa, ninguém entendeu nada. E é mesmo mais razoável considerar que a identificação de tantos primos num vírus simples seja mera coincidência. Mas se existe um mérito na pesquisa dos japoneses é que eles foram visionários: nos anos 70, era impensável “escrever” mensagens num vírus. Com a tecnologia atual, somos muito bem capazes de fazer um projeto inteligente de mensagem num vírus, capaz de continuar existindo quando a civilização humana for apenas lembrança e poeira.

Os interessados em ler o artigo original (em inglês) da dupla japonesa podem enviar um e-mail para mim, no alexey.dodsworth@gmail.com . Enviarei o arquivo em formato pdf, tão logo me seja possível.

Quadros construídos por Yokoo e Oshima a partir do vírus Phi-X174 - página 152 da Ícarus nº 38.

Quadros construídos por Yokoo e Oshima a partir do vírus Phi-X174 – página 152 da Ícarus nº 38.